A vida: uma verdade mentirosa

Escrevi, tempos atrás, um artigo intitulado “A verdade é uma palavra inútil”. À época, fundamentado nas teorias do psicanalista italiano radicado no Brasil Contardo Calligaris, procurei expor a idiossincrasia existente na terminologia “verdade”. Tampouco busquei as origens etimológicas da palavra para comprovar meus argumentos (não se tratava de um exercício de lógica aristotélica), sequer mergulhei nos idiomas grego e latino escarafunchando o valor científico de emprego do termo, bem como sua função semântica e sintática no tocante à correção do que possa expressar. Pelo contrário, lancei mão de argumentos menos pretensiosos, porém repletos de reflexões sobre a verdade, tanto no que concerne à sua utilidade quanto no que concerne à sua inutilidade.

Contudo, hoje busco fundamentação no grande psicanalista francês Jacques Lacan, para quem “a verdade tem estrutura de ficção”. Lacan suspeitava que as ficções residiam no interior da verdade. Não obstante, ele não se referia à verdade defendida nos púlpitos, absoluta pela natureza de divindade que a envolve; tampouco referia-se à verdade defendida pela ciência, cujo valor de absoluto repousa no método científico, disciplinado; sequer referia-se à verdade da filosofia, cujo valor sublime repousa fundamentalmente nos ditames do pensamento racional ou mesmo na constatação empírica que fundou o cientificismo. Lacan referia-se à verdade enquanto estrutura do sujeito mediatizado pelo desejo. Para Lacan, o desejo funda o sujeito na medida em que o sujeito é resultado do que “um significante representa para outro significante”.




Nesta perspectiva, não só a verdade tem estrutura de ficção como a ficção estrutura-se de pequenos fragmentos de verdade. Afinal, “não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta”, disse Lacan. Portanto, o que existe, no divã do setting psicanalítico, não é a verdade absoluta da ciência, tampouco da filosofia ou da religião. No divã em que o sujeito repousa seu corpo e seu inconsciente, o que existe é a “verdade mentirosa da vida” amparada no discurso do Outro. O que é, então, o inconsciente para Lacan? “O inconsciente é esse capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado”.

Neste contexto, a verdade realmente apresenta-se como uma palavra inútil. Inútil não porque seja desprovida de utilidade. Pelo contrário, inútil porque a utilidade da palavra verdade (de valor incomensurável para o discurso científico, filosófico e religioso) não manifesta a semântica complexa do desejo do sujeito; não diz nada a respeito daquilo que converte o indivíduo em sujeito nem daquilo que o desejo do Outro tem produzido no sujeito. A palavra verdade é inútil porque possui apenas valor de representação, mas não de realidade própria para aquilo que o psiquismo considera como fonte do desejo que não pode ser expresso mediante a linguagem.

A verdade mentirosa da vida fundamenta-se no discurso do sujeito a respeito da sua própria posição de sujeito atravessado pela linguagem. Amiúde, “nisso se observa que é com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão da verdade”, […] mas não se pode dizer a verdade senão utilizando as fabulosas malhas da ficção.

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