A palavra portuguesa suicídio tem sua origem no latim, cujo termo sui tem como referência de significação a expressão “a si mesmo” e caedes concerne especificamente à terminologia “matança”. Nesta perspectiva, a terminologia suicídio, como conhecida na contemporaneidade, refere-se especificamente à matança de si mesmo. Em 1734, foi introduzida na língua francesa para expressar o ato de matar a si mesmo, atribuindo-lhe concomitantemente um sentido patológico em contraponto à antiga acepção formulativa de “morte voluntária”, que designava o sentido de crise contra si mesmo.
Todavia, as acepções linguísticas e semânticas nunca são estáticas. Se por um lado, o ato de matar a si mesmo era considerado heroico nas sociedades antigas, bem como no Japão feudal, proporcionando um sentimento de honra e dignidade, principalmente entre os guerreiros, também não é menos verdade que nas sociedades mais modernas o suicídio passou a ser encarado como um acometimento patológico destituído de qualquer dignidade. Mas, principalmente nas sociedades ocidentais, dominadas pelas doutrinas herdadas do Cristianismo, o suicídio começou a ser fortemente rejeitado, combatido e considerado um pecado contra a si próprio, contra a humanidade e contra Deus. Enquanto prática condenável pelas fileiras religiosas no domínio das sociedades ocidentais, principalmente transformado num grotesco resultado de possessão demoníaca em muitos casos, o suicídio transforma-se numa afronta à dignidade dos familiares e amigos do suicida, cujas respostas não encontram para compreensão desse ato desesperado.
No final do século XIX, entretanto, transformando-se em sintoma de uma doença social ou psicológica, o suicídio passa a ser estudado com a objetividade de um olhar científico. Primeiro com o grande sociólogo francês Émile Durkheim, que demonstrou a partir de seu estudo de 1897, que o suicídio não passa de um fenômeno social. Para Durkheim, o suicídio não depende da psicologia, tampouco da hereditariedade, da insanidade ou da degenerescência moral. O suicídio, segundo Durkheim, tem suas ligações radiculares na formação das estruturas sociais das sociedades modernas, cuja ausência de encaixe adequado nessas estruturas pode levar o sujeito à famigerada tentativa de fuga.
Na perspectiva de radicalidade, ou seja, buscar as raízes desse controverso fenômeno humano, porém, Durkheim falha irremissivelmente, uma vez que não consegue avançar além da margem do rio, cujas águas profundas ocultam respostas de grande alcance epistemológico. Em outras palavras, a abordagem sociológica durkheiminiana desconsidera uma dimensão essencial do suicídio, presente na totalidade das formas de morte voluntária, a saber: o aspecto psíquico do ato suicida.
Neste aspecto específico, fora necessário que outro homem de espírito científico e profundidade conceitual teorizasse acerca dos elementos psíquicos do ato suicida. O supracitado homem, Sigmund Freud, escrevendo um artigo em 1917, cujo título sugere como escopo o desnudamento dos aspectos psíquicos imbuídos no luto e na melancolia, apresenta o suicídio como uma forma de autopunição, um desejo de morte dirigido contra outrem que se vira contra o próprio sujeito.
Antes de conceituar a noção de pulsão de morte, conceito controverso ainda na contemporaneidade, bem como teorizar as noções de narcisismo, melancolia e luto, o suicídio tornou-se uma questão pela qual o psicanalista austríaco se interessou, inclusive, abordando o tema frequentemente nas reuniões da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras.
Posteriormente, Freud retoma o tema do suicídio para sustentar uma hipótese de relação entre a forma de suicídio e a diferenciação sexual, escrevendo: a escolha de uma forma de suicídio revela o simbolismo sexual mais primitivo; o homem se mata com um revólver, ou seja, joga com seu pênis, ou então se enforca, isto é, transforma-se em algo que pende em todo o seu comprimento. A mulher conhece três maneiras de se suicidar: saltar de uma janela, atirar-se na água ou se envenenar. Pular da janela significa dar à luz, atirar-se na água significa trazer ao mundo, e se envenenar significa a gravidez. “[…] Assim, mesmo ao morrer, a mulher cumpre sua função sexual.”
Para Sigmund Freud, a prática do suicídio estava impreterivelmente relacionada à estrutura psíquica, mais especificamente naquilo que concerne à sexualidade. Assim, Freud retira das mãos de Durkheim a reflexão conceitual acerca do suicídio e estabelece, ainda que sem contestar objetivamente a teoria durkheiminiana, uma conceituação ancorada nas estruturas do psiquismo humano. Desta forma, não somente o discurso científico passa a se interessar pelo tema do suicídio, abdicando dos preconceitos religiosos e sociais, mas, inferindo reflexões profundas nas etiologias, sintomas e fenômenos (se é que podemos dizer dessa forma), vinculados irremediavelmente a essa prática milenar. Ao se desvincular dos juízos preconceituosos, a psicanálise procura compreender as origens desse fenômeno, tentando adquirir respostas eficazes no tocante às causas que levam indivíduos a perpetrar uma ação de caráter tão radical contra si mesmos.
Compreendendo o suicídio como uma forma de autopunição, ou seja, a realização de um desejo de morte direcionado ao outro que se vira rigorosamente contra si mesmo, Freud sustenta, nas páginas de seu texto de 1917, “Luto e Melancolia”, as três tendências suicidas sustentadas pelo discurso da psicopatologia, os quais são, respectivamente, desejo de morrer, desejo de ser morto e desejo de matar. Grosso modo, mata-se a si mesmo para não matar o outro.
Colocado nestes termos parece soar esquisito, ridículo e até mesmo equivocado, pensar que o ato suicida é uma fuga para não acarretar danos permanentes a outros indivíduos. Todavia, devem-se colocar na balança dos fenômenos psíquicos os princípios, valores morais, éticos e religiosos com os quais o indivíduo manteve contato durante sua vida. Nesta perspectiva, após um exame bem detalhado dos desdobramentos psíquicos do sujeito, pode-se compreender a resistência enfrentada pelo sujeito no sentido de provocar danos sérios e irreparáveis a outros indivíduos, preferindo, enquanto instrumento de autoexílio, acarretar a morte a si mesmo.
Embora tenhamos até o momento avaliado o suicídio nos seus aspectos conceituais, históricos, sociológicos e, finalmente, psíquicos, torna-se indispensável concluirmos esta minúscula série de textos lembrando que o suicídio não é consequência de um ato de loucura. O suicídio apresenta-se enquanto uma atualização da pulsão de morte mediante acting out, isto é, passagem ao ato. Por isso, não podemos pensar o suicídio como consequência de uma neurose, tampouco de uma psicose (embora muitos indivíduos psicóticos possam recorrer, em momentos de aguda crise, a expedientes extremos de violência tanto contra outrem como contra seu próprio corpo). Segundo Freud, o suicídio é consequência “de uma melancolia ou de um distúrbio grave.”
Por outro lado, deve-se encarar a psicanálise como aquilo que ela realmente é: um método terapêutico. Fundamentado na premissa de que existe uma possibilidade de que o psiquismo possa adoecer, isto é, desviar-se de sua forma considerada normal de funcionamento, a psicanálise busca proporcionar tratamento para as patologias psíquicas, ou seja, as psicopatologias, mediante uma abordagem amparada no relato do paciente acerca da sua própria história. Neste sentido, para que haja um tratamento essencialmente psicanalítico, faz-se necessário que o paciente utilize-se do discurso a fim de atribuir sentido às suas experiências de vida (denomina-se regra da Livre Associação). Assim, a psicanálise viu-se confrontada com uma concepção psicopatológica do suicídio, reduzido à mera condição de doença, sendo, desta maneira, forçada a cuidar de indivíduos suicidas considerados depressivos.
Ainda assim, torna-se indispensável uma ressalva acerca do suicídio, bem como uma ressalva acerca do método psicanalítico, respectivamente: primeiro, quando um sujeito quer suicidar-se inexiste terapia capaz de impedir que o faça. Segundo, a psicanálise precisou confessar sua impotência à medida que experimentou o desconforto do suicídio de alguns membros da comunidade freudiana, como Herbert Silberer, psicanalista austríaco que se suicidou por enforcamento na noite de 11 de janeiro de 1923.
Reconhecer a complexidade do tema é o princípio de uma reflexão melhor fundamentada.
Obs.: Existem serviços de apoio emocional e prevenção do suicídio. Uma dessas iniciativas é o Centro de Valorização da Vida. https://www.cvv.org.br/
Obs2: Artigo escrito a partir de uma série de artigos publicada originalmente na coluna Glossário de Psicanálise do Jornal Alerta.