Depois de algumas horas caminhando desnorteado pela cidade**, como uma criança que se perdeu dos pais no meio da multidão, deparei-me com a Praça da Bíblia. Àquela altura, eu já havia passado defronte à Câmara de Vereadores e do Shopping Teixeira Mall. Mas a caminhada estava diferente daquela que eu costumava realizar todos os sábados em direção ao Mercadão, onde sempre reencontro os amigos dos velhos tempos para um dedo de prosa e uma cervejinha gelada. Desta vez, enquanto caminhava, ocorreu-me que a cidade não é mais dos pioneiros. A gente nem sequer conhece os donos das lojas. Parei na porta de uma loja para recuperar o fôlego e percebi que não conheço as pessoas que trabalham ali.

Antigamente, a gente ia na venda de Manoel de Etelvina prosear, ou comprar farinha na venda dos Nascimentos… e, também, prosear. Ou mesmo na antiga venda da Fazenda Cascata. Hoje a cidade não pertence aos pioneiros e seus familiares, mas a pessoas que chegaram depois. O progresso chegou pela estrada aberta por Eleosippo Cunha, e por aqui fez morada, modificando a nossa sociabilidade.
Na década de 60, a modernidade batia às portas do Brasil, que tentava se agarrar a qualquer custo àquela senhora bela, educada e bem-vestida que nos trazia uma nova identidade vinda da Europa e dos Estados Unidos. Com o avanço inegável do capitalismo, a senhora modernidade chegava trazendo novidades interessantes à brasilidade: eram estilos de roupas, músicas, sapatos e, principalmente, veículos automotores que com o seu ronco groove vinham substituir as atrasadas linhas férreas café-com-pão-manteiga-não e do lombo dos animais cavalares, asfalto no lugar do chão batido de terra vermelha; o rock n’ roll já começava a tocar nas rádios brasileiras, mas aqui no interior da Bahia The Beatles nem sequer disputava terreno com o bom e velho forró. Guitarra elétrica aqui só tinha serventia se fosse para acompanhamento da sanfona. Poucas décadas após a abolição da escravatura, brancos e negros tentavam conviver pacificamente, ainda que fosse difícil naquela época compreender por que existia tanta desigualdade racial no país.
E foi caminhando pelas ruas de Teixeira de Freitas que recordei do seu antigo nome: “Comércio dos Pretos”. E acabei me dando conta de que os pretos ficaram esquecidos após a chegadas dos capixabas e mineiros. Não somente aqueles pioneiros negros já faleceram, como os seus descendentes – filhos e netos – ou foram embora da região ou são apenas ilustres desconhecidos vivendo agora do suor de seu rosto e de suas mãos calejadas. Simplesmente desapareceram do cenário político da cidade.

Os tempos são outros. Manoel de Etelvina não tem mais o boteco para a gente tomar um suco de pano de sinuca bem adoçado, especiaria culinária própria dos improvisos das vendas roceiras que se recusavam a perder qualquer freguês.
Mas o ponto em questão é que a sociabilidade mudou bastante desde a década de 60, quando íamos dançar forró a noite inteira nos festejos de São João, São Pedro e São Benedito. Aliás, a saudade que eu tenho daquela época está ligada à parte profana da coisa, não da religiosidade. “Esse menino, não importa se tem santo ou não, o importante é arrastá as chinelas até amanhecê o dia”, como dizia o meu avô Afrânio Novais entre gargalhadas e um gesto forrozeiro com as mãos. Mas aquele arrasta-pé em companhia de pessoas confiáveis e amigas não existe mais. O que o “Comércio dos Pretos” nos ensinou foi uma sociabilidade comunitária, bem diferente da sociabilidade que chegou com os capixabas e que hoje predomina na nossa cidade depois desse tal de progresso. Não que os capixabas tenham alguma responsabilidade nisso, porque não têm. Essa é uma marca do crescimento das cidades. A gente não sabe mais o nome de ninguém, não conhece os vizinhos, não tem mais os festejos dos Santos de devoção das famílias…

O “Comércio dos Pretos” é, hoje, o comércio de muita gente que chega de todas as redondezas do Brasil. Até um indiano eu encontrei recentemente comercializando artigos de vestuário, ali mesmo nas proximidades do Mercadão. E o pior é que o sujeito ainda me cumprimentou em híndi, pensando que eu também fosse indiano. Ao namastê que me direcionou, apenas respondi alsalam ealaykum, acenando com a mão direita, e segui caminhando. Fiquei até consternado quando o riso cordial foi esmaecendo no rosto do pobre rapaz.
* Autor: Maurício de Novais Reis.
** Esta crônica foi premiada com a primeira colocação na versão interna do Prêmio Castro Alves de Literatura 2025, realizado pela Academia Teixeirense de Letras – ATL.
*** Para saber mais a respeito do desenvolvimento de Teixeira de Freitas, acesse o site www.tirabanha.com.br.