TDAH: sob o olhar da psicanálise

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, comumente conhecido como TDAH, é um “transtorno do neurodesenvolvimento definido por níveis prejudiciais de desatenção, desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade. Desatenção e desorganização envolvem incapacidade de permanecer em uma tarefa, aparência de não ouvir e perda de materiais em níveis inconsistentes com a idade ou o nível de desenvolvimento. Hiperatividade-impulsividade implicam atividade excessiva, inquietação, incapacidade de permanecer sentado, intromissão em atividades de outros e incapacidade de aguardar – sintomas que são excessivos para a idade ou o nível de desenvolvimento. […] O TDAH costuma persistir na vida adulta, resultando em prejuízos no funcionamento social, acadêmico e profissional”, indica o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana. Pesquisas indicam que o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade ocorre num percentual que gira em torno de 5% das crianças em idade escolar, tendo como etiologia uma base genética. Sendo assim, numa sala de aula com 20 crianças, é bastante provável que pelo menos uma criança apresente os sintomas peculiares do distúrbio.

Segundo a Associação Brasileira do Déficit de Atenção, o transtorno demonstra prevalência maior entre crianças e adultos do sexo masculino, numa proporção de 2 para 1 em crianças e 1,6 para 1 em adultos, em relação ao sexo feminino. Outro fator que deve ser esclarecido é que o TDAH nem sempre manifesta todos os sintomas mencionados acima, esclarece o DSM-5. Isso ocorre porque, conforme indicado no próprio manual diagnóstico, existem subtipos, que são classificados como: combinado, predominantemente desatento e predominantemente hiperativo-impulsivo.

Desta forma, o transtorno pode apresentar-se de maneiras diferentes. No aspecto combinado, a criança apresenta sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade, ou seja, combina os aspectos hipercinéticos com aspectos de desatenção. Já no aspecto predominantemente desatento, os sintomas de desatenção predominam, tornando pouco visíveis os sintomas motores. Outro subtipo existente refere-se a sintomas hipercinéticos que predominam sobre os aspectos de desatenção e falta de concentração. Esses critérios de observação sintomática devem referir-se aos últimos seis meses. Por outro lado, não representaria nenhuma surpresa que aspectos não-combinados evoluíssem para aspecto combinado, posto que compõem o mesmo transtorno.

O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5) sustenta que “Atrasos leves no desenvolvimento linguístico, motor ou social não são específicos do TDAH, embora costumem ser comórbidos. As características associadas podem incluir baixa tolerância a frustração, irritabilidade ou labilidade do humor”. Desta forma, torna-se evidente que o TDAH pode provocar intensas dificuldades de comunicação, sociabilidade e progresso educacional e profissional, não porque comprometa a inteligência, mas em decorrência da desatenção, desorganização, inquietude, falta de encaixe nos padrões socialmente sancionados, o que normalmente resulta em discriminação por parte dos colegas que não compreendem as dificuldades enfrentadas pelo sujeito acometido pelo transtorno.

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade reveste-se de uma complexidade impressionante, embora haja, no âmbito do senso comum, certa “clareza” nos diagnósticos, porque as pessoas em geral acreditam que toda criança inquieta é forçosamente hiperativa, o que não corresponde à realidade. Essa concepção popular talvez seja fruto da propagação midiática que o transtorno vem sofrendo, muitas vezes até com determinado êxito de esclarecer questões referentes ao transtorno, o que é absolutamente importante. Todavia, o que se deve combater é a interpretação precipitada que frequentemente se faz do disposto no manual diagnóstico por indivíduos que não comungam dos estudos teórico-metodológicos voltados para o atendimento a esse público específico.

“A questão de como é feito o diagnóstico do TDAH é um dos pontos mais difíceis, complexos e polêmicos”, revela a psicóloga clínica Maria Beatriz Peixoto Tuchtenhagen. Difícil, complexo e polêmico porque o diagnóstico acontece fundamentalmente amparado na observação por parte do médico (preferencialmente com especialidade em neurologia ou psiquiatria da infância e adolescência), bem como na história do paciente. Faltando, portanto, os exames e testes clínicos de imagem ou de laboratório para a confirmação, o diagnóstico não raramente enfrenta resistência de muitos pacientes.

Seguindo o disposto no mencionado manual diagnóstico, geralmente o clínico solicita que a família e a escola preencham um formulário no qual vêm descritos os possíveis sintomas que se manifestam em crianças com TDAH. Vale ressaltar que no ato do preenchimento do documento, os pais e professores devem assinalar apenas as opções que indicam sintomas apresentados no decurso dos últimos seis meses.

No tocante ao aumento do número de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, duas situações não podem deixar de receber os devidos questionamentos. Um questionamento relevante diz respeito a se o número de diagnósticos está crescendo porque existe um conjunto maior de conhecimentos por parte da medicina, ou se, devido à escassez de estudos conclusivos e em decorrência da amplitude sintomatológica que tanto pode indicar TDAH como poderá indicar inúmeros outros transtornos catalogados no DSM. Questionamentos dessa natureza tornam-se importantes em decorrência, principalmente, das condições de vigilância psicofarmacológica. Portanto, surge outra questão de igual relevância: o homem contemporâneo consome uma quantidade abusiva de psicofármacos?

Nesta perspectiva, no tocante à medicalização do sujeito contemporâneo, especialmente no tocante à medicalização da infância, torna-se necessário refletir sobre a medicalização no âmbito do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade. No TDAH, a medicação mais amplamente difundida é o metilfenidato, popularmente conhecido como Ritalina. Todavia, não é sem um miligrama extra de controvérsia que esse fármaco tem sido utilizado, sob prescrição e rigoroso acompanhamento médico, por tratar-se de uma substância estimulante do sistema nervoso central cuja finalidade é provocar aumento na produção de neurotransmissores como dopamina e norepinefrina, o que auxilia na manutenção da concentração e reduz eficientemente os sintomas de hiperatividade (além da Ritalina, existem outros fármacos utilizados no tratamento do TDAH, como o Concerta e o Venvanse).

Como não existe, até o presente momento, uma causa específica para o problema, embora algumas pesquisas tenham apontado determinados genes como potenciais fatores etiológicos. Outro fator que às vezes é apontado como possível causador do transtorno é a presença de minúsculas lesões cerebrais, tão minúsculas que torna impossível a detecção nos exames neurológicos. Não obstante as pesquisas ainda não sejam conclusivas, certamente os sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade que interferem na vida de crianças e adultos precisam ser identificados para tratamento.

Se por um lado, parecemos combater o que habitualmente designamos de medicalização da infância, por outro, reconhecemos a importância dos fármacos nos quadros mais graves de acometimento patológico em geral, sempre, obviamente, sob o rigoroso acompanhamento médico.

Como a psicanálise pode contribuir?

No entanto, como a psicanálise pode oferecer contribuições legítimas à temática ora tratada? Maria Beatriz Peixoto Tuchtenhagen responde: “A contribuição da psicanálise com relação a esta temática é de grande e fundamental importância, pois é através de seus aportes que se tem a possibilidade de resgatar o sujeito em sua subjetividade, recolocando-o em cena novamente.” A palavra-chave, portanto, no interior da teoria psicanalítica é “sujeito”. A psicanálise confere ao sujeito o direito de exercer sua subjetividade, elaborar seus conflitos, reconstituir seu discurso frente ao real, numa perspectiva de reconstrução do próprio desejo.

Sim, a psicanálise confere ao sujeito a possibilidade de mergulhar no profundo de si mesmo, através das elaborações significantes e reconhecer-se como sujeito desejante. À medida que os significantes se encadeiam, estabelecendo conexões com o inconsciente do indivíduo, este passa a elaborar seus conflitos intrapsíquicos, fomentando, por fim, o conhecimento de si mesmo, da própria subjetividade.

Neste sentido, embora os fármacos apresentem certa medida de eficácia diante dos sofrimentos apresentados pelo corpo, posto que provocam reações químicas na constituição neurobiológica dos indivíduos que fazem desaparecer os sintomas, não são capazes, por outro lado, de estruturar uma especulação acerca das origens dos sintomas manifestos.

A psiquiatria biológica, utilizando-se da tabela diagnóstica catalogada no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais – DSM, propõe intervenções biológicas, medicamentosas e neuroquímicas. Todavia, fundamentada nas teorias de Freud, cuja desconfiança fica patente nos escritos freudianos, a psicanálise procura propor caminhos diversificados. Obviamente, aqui não se afirma que os psicofármacos sejam inúteis (afirmamos anteriormente a necessidade de utilização de fármacos em alguns quadros de transtornos mentais, sempre com rigoroso acompanhamento médico), porém neste aspecto a desconfiança parece bastante salutar. Tuchtenhagen afirma que a “tabela diagnóstica do DSM-IV sobre o TDAH são manifestações que podem ser encontradas em crianças neuróticas, border ou psicóticas como produto de defesas maníacas, elementos depressivos, atitudes de dissociação, histerias, condutas regressivas ou falhas no recalcamento primário”.

Desta forma, o que está em jogo na clínica psicanalítica, muito mais do que a descrição da sintomatologia para posterior intervenção terapêutica, é a consciência de que há um saber para além da racionalidade científica, que a psicanálise denomina de inconsciente, no qual as respostas acerca do sofrimento psíquico podem estar escamoteadas.

Mesmo assim, essas afirmações não implicam que os saberes psiquiátricos sejam dispensáveis. Pelo contrário. Os saberes psiquiátricos poderão proporcionar novos aportes à compreensão no que se refere aos transtornos mentais em geral, e ao TDAH em particular, dentro dos limites de sua atuação. Até porque, as melhores condições de acompanhamento dos sujeitos com esses transtornos não se encontram na disputa entre os variados saberes, mas na parceria multidisciplinar desses saberes.

Portanto, partimos do pressuposto de que as variadas áreas do saber detêm um discurso sobre a condição humana que poderá viabilizar as necessárias descobertas acerca das semiologias dos transtornos mentais, bem como oferecer condições profícuas no tocante à terapêutica. Para tanto, as disciplinas que discutem esta temática estão convidadas a participar deste importante debate. Até porque, como disse Jung, nesta empreitada de tocar a alma humana, devemos ser apenas outras almas humanas.

 

 

* Artigo publicado originalmente na coluna Glossário de 
Psicanálise, do Jornal Alerta.




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