CONTO: O Psicanalista

A temperatura estava estranhamente fria naquela manhã de terça-feira primaveril.[1] Antes de vestir-se, Vladimir verificou a rua através das persianas da janela do seu quarto, entreabrindo-as com a mão esquerda, enquanto a mão direita segurava um copo de suco de abacaxi. Após soltar a persiana, bebeu o restante do suco num gole longo e, mais uma vez, visualizou a rua através da janela de seu quarto de dormir, no segundo andar. Percebeu que as árvores estavam balançando inusualmente sob a ação do vento matutino.

Vestiu-se apressadamente. Colocou uma pesada jaqueta, prevenindo-se do frio. E correu para o consultório, pois tinha paciente agendado e precisava chegar alguns minutos antes, a fim de se preparar para aquela sessão de análise e revisar suas anotações referentes à sessão da semana anterior. Desceu as escadas dando pequenos passos apressados, pegou as chaves que estavam sobre a mesa de centro de sua sala bem decorada e partiu acelerando o confortável Jeep Compass.

— Doutor, o paciente já está aguardando — disse Alice, sua secretária.

— Ele chegou muito cedo. Aconteceu alguma coisa? — retrucou Vladimir, consultando o relógio de pulso.

Alice correu os olhos sobre alguns papéis na mesa e respondeu:

— Não me relatou nada, nenhuma emergência. Pode ser apenas que precisou sair mais cedo de casa e decidiu vir direto para cá.

— Ok, Alice. Vou entrar para o consultório e revisar algumas coisas. Caso alguém ligue antes das 8h00, pode transferir para a minha sala.

— Sim, doutor — concordou a secretária. — A propósito, tem um recado para o senhor. — E entregou um pedaço de papel para o psicanalista.

Vladimir leu rapidamente a curta mensagem expressa no papel, olhou novamente o relógio de pulso, enfiou o papel no bolso dianteiro da calça e se direcionou à porta.

— Obrigado, Alice. — Vladimir agradeceu enquanto adentrava o consultório, fechando a porta atrás de si.

Vladimir abriu as cortinas das janelas, deixando entrar a claridade, que iluminou as estantes de livros, as poltronas, o divã e as telas com retratos de Freud e Lacan estrategicamente colocados atrás das poltronas. Dirigiu-se à sua mesa, sentando-se confortavelmente na sua poltrona de trabalho, abriu novamente o pequeno bilhete que lhe fora entregue pela secretária, fez um leve movimento com a cabeça e guardou o papel, desta vez dentro de sua agenda. Abriu uma pequena caderneta e revisou o caso do paciente.

— Bom dia, Alexandre — disse Vladimir, fazendo um gesto para que o paciente o seguisse através da porta aberta.

Alexandre sorriu para o terapeuta, buscando apertar-lhe a mão:

— Bom dia, doutor. O senhor nunca se atrasa, gosto disso.

— Soube que você chegou mais cedo… Aconteceu alguma coisa? — sondou o doutor. — Sabe que em casos de emergência pode me ligar…

— Não aconteceu nada de especial, acredite. Só quis chegar mais cedo para pensar um pouco sobre as coisas — respondeu o paciente.

Com um gesto suave, o psicanalista indicou que o paciente devia acomodar-se no divã. Este, por sua vez, entendeu o gesto e deitou-se:

— Sabe, doutor. Estou precisando de sua ajuda para tomar uma decisão — começou.

— Uma decisão? — interrogou o doutor.

— Sim, uma decisão. É curioso que estou fazendo análise há quase um ano e ainda não disse a verdadeira razão para eu estar aqui, semana após semana.

— E essa decisão que você pretende tomar está relacionada com o fato de você não ter me dito o verdadeiro motivo para sua entrada em análise? — interveio Vladimir.

— Sim, como você sabe?!

— Eu não sei. Apenas suponho que exista algo para além daquilo que você me diz no setting. E deixe eu adivinhar: por isso chegou tão cedo…

— Nada escapa a você, não é, doutor? Sim, está tudo relacionado.

O doutor fez um gesto com as duas mãos como quem diz: “este espaço é todo seu. Sinta-se à vontade”.

— Pois bem, doutor. Durante o fim de semana pensei bastante naquilo que você disse. Quero dizer, por que me escondo detrás de máscaras, evitando o desconforto de uma relação verdadeira com outra pessoa? Por que tenho medo de me mostrar como sou realmente? No fundo parece que tenho medo da rejeição… por isso que meus relacionamentos são tão superficiais.

Enquanto Alexandre falava, Vladimir estava completamente distraído, absorto em seus próprios pensamentos, flutuando sobre as paisagens que Alexandre pintava através de sua narrativa livre e desimpedida.

— Eu sempre gostei de um tipo de relação sexual que as pessoas consideram suja e extravagante. Não posso manter um relacionamento duradouro com nenhuma parceira, porque ela logo descobriria a selvageria do meu desejo e a minha necessidade de impor um controle absoluto sobre a outra pessoa. — Suspirou fundo. — Pegar as putas é tão mais fácil: com elas posso brincar de qualquer fantasia que eu quiser, até mesmo de sadismo.

— Sadismo? — indagou Vladimir, com a mente distante.

— Sim. Mas fique tranquilo, doutor. Nunca faço nada contra a vontade da outra pessoa. É sempre consexual.

— Consexual?! — interveio o doutor.

— Perdão, eu quis dizer consensual — retrucou o paciente.

— Mas você não disse consensual. Você disse consexual — provocou o doutor.

— Foi um erro, doutor. Eu queria dizer consensual, mas erroneamente falei consexual.

— Alexandre, na minha profissão costumamos dizer que o cliente está sempre errado. Não porque erra quando diz uma coisa querendo dizer outra, mas porque diz exatamente o que queria ocultar — disse Vladimir, mordendo a perna dos óculos de leitura. — A pergunta é: o que você buscava ocultar?

— Nada — respondeu o paciente, contorcendo-se desconfortavelmente sobre o divã.

Alexandre cruza os braços sobre o peito.

— Você não estaria tentando ocultar que a prática sádica em suas relações sexuais nem sempre é consensual, como você quer acreditar e me fazer acreditar?

— É possível, doutor.

— Lembro-me que você relatou ter sofrido abusos de uma vizinha mais velha quando era criança… Uma mulher, que era amiga de sua mãe, aproveitando-se de encontrar você sozinho, tocava sua genitália e fazia você também tocar a genitália dela. — Vladimir fez uma pausa. — Você disse que ainda podia sentir “o calor da xoxota dela nos seus dedos”.

— Sim. Isso pode estar relacionado com o meu desejo sádico e destrutivo? — perguntou, virando-se para o analista.

Com um gesto suave, Vladimir pede que seu paciente deite-se novamente no divã.

— Sim, é possível. Considerando que você foi vítima de uma relação não consensual – porque você não entendia o que estava acontecendo ―, não seria demasiadamente equivocado imaginar que sua montagem sádica tenha alguma relação com o ocorrido na infância, como uma espécie de tentativa de compreensão daquele ato. Com isso, é possível que você repita esse comportamento tentando inconscientemente elaborar aquela situação primária.

— No fundo também acredito nisso. Mas isso não pareceria um pretexto para eu continuar fazendo o que faço, uma espécie de autojustificação? — indagou o paciente.

— Sim. Você quer se autojustificar? — provocou o doutor.

— Sinceramente? Não sei. Mas sinto no fundo de mim que o que eu quero mesmo é uma vida comum, família, filhos, passeios de domingo, fins de semana na praia com a família. Mas sinto que isso não é pra mim. Me responda, doutor: que mulher vai querer um relacionamento sério e duradouro sabendo das minhas fantasias de controle? Que mulher, em sã consciência, vai querer manter relações com um homem que pode matá-la asfixiada durante o sexo? Que mulher de mente doentia iria querer estabelecer uma relação duradoura com um monstro como eu?…

— Monstro? — interrompeu o doutor.

— Sim. É o que eu sou! Um monstro! Um monstro fodido dos infernos! — gritou cobrindo o rosto, mas não aparecia nenhum sinal de choro.

— No fundo você gostaria que as pessoas o vissem como um monstro. Assim você não precisaria fazer tanto esforço para se esconder detrás dessas máscaras de bom moço. Ficaria mais fácil você se odiar e, por fim, cair definitivamente na obscuridade. Assim, você não estaria aqui nesta posição de desconforto emocional lutando contra seus próprios demônios.— Vladimir fez uma pausa, olhou para o retrato do Freud do outro lado da sala. — Mas você não é um monstro. Aliás, o mundo está cheio de pessoas achando que são monstros, mas que são apenas pássaros feridos que ferem em revide.

— E ser um pássaro ferido que fere em revide serve de remissão? — perguntou Alexandre.

— Não. Todos somos responsáveis pelos atos que praticamos. Mas é diferente de ser um monstro. O pássaro continua sendo um pássaro, mesmo que precise se jogar violentamente contra as grades da gaiola. — Respirou, retirando os óculos do rosto. — O segredo é curar as próprias feridas para não ferir mais ninguém.

— Você está sendo condescendente, doutor. Aposto que nos churrascos de domingo você faz piada com os amigos sobre os malucos que aparecem em seu consultório.

— Essa possibilidade preocupa você? — provocou o terapeuta.

— Um pouco. — respondeu o paciente, passando as mãos no rosto.

— Tenha certeza de que não comento absolutamente nada sobre o que acontece neste espaço. — Vladimir reafirmou sua posição ética.

Quando Vladimir finalmente voltou os olhos para Alexandre, deparou-se com aqueles olhos verdes marejados. Neste momento, parecia sair de dentro dele um grande pesar, como um peso insuportável sendo retirado de suas costas. Aquela arrogância que ele sempre carregava consigo desapareceu e, no lugar, surgiu um menino indefeso cujo brinquedo fora quebrado.

— Ok, Alexandre. Continuamos na próxima sessão — disse o doutor, balançando a cabeça orgulhosamente.

Acompanhou o paciente até a porta, fechando-a em seguida. Sentou-se à mesa, retirou o aparelho celular do bolso, discou um número e ligou:

— Oi, Verônica. Recebi seu recado. Você está pronta?

— Sou todinha sua, gostosão. Já estou usando a fantasia que você mandou — respondeu do outro lado da linha.

— Excelente, minha putinha. Excelente. Em dez minutos chego aí para chicotear seu corpo todinho.

[1] Este conto conquistou o segundo lugar na versão regional do Prêmio Castro Alves de Literatura 2022, promovido pela Academia Teixeirense de Letras.

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