Naquela manhã primaveril de outubro, Pâmela acordou com o espírito animado como poucas vezes durante sua curta vida miserável. Apresentou-se para o café da manhã com a família, beijando ternamente a mãe, que já estava à mesa. Sorriu suavemente para o pai, zombando da derrota flamenguista na noite anterior, como habitualmente acontecia nas partidas contra o tricolor paulista. De passagem pela irmã, que também estava à mesa segurando uma xícara de café preto em uma das mãos e, na outra, um pedaço de queijo branco, deu-lhe um peteleco na orelha, aproveitando-se que o cabelo estava preso no alto da cabeça.
A irmã fez cara de quem não gostou, mas não disse nada; apenas sorriu. Não era frequente ver Pâmela acordar bem-humorada, de bem com a vida. Lembrou-se que após o acidente a caçula não era mais a mesma – havia guardado muitos traumas dos acontecimentos.
A história do acidente tornou-se uma ferida aberta constantemente remexida pelos vizinhos, que perguntavam como ela conseguia dormir após aquilo. Cada pergunta, obviamente, era como um dedo com unhas enormes e pontudas espetando sua alma.
Pâmela raramente conseguia dormir. Mas naquela noite em especial, dormiu maravilhosamente.
Naquela noite, os sonhos trágicos não vieram aterrorizá-la. Sentia-se como uma tábula rasa, deitada sobre o colchão macio e confortável, sua cabeça bem apoiada sobre o fino travesseiro projetava o futuro: “psicologia ou fisioterapia?” — perguntava-se, mentalmente.
— Primeiro, termino fisioterapia. Depois, psicologia. — respondeu a si mesma, assustada com o volume involuntário da própria voz.
E dormiu.
Pela primeira vez, o asfalto em contato com a sua pele branca saíra da sua memória. Seu irmão sangrando, o rosto desfigurado, a massa encefálica de cor rubra fervendo sobre a escura superfície asfáltica. O céu escuro-azulado sobre sua cabeça tonta, liberando uma atmosfera lúgubre que a fazia chorar e tremer. O metal retorcido dos carros, os gritos das outras vítimas, a sirene dos bombeiros se aproximando… Tudo desaparecera naquela noite.
O zumbido no seu ouvido provavelmente era eco do metal se amassando ou da buzina tocada ante o impacto. Este nunca desaparecera de sua cabeça.
Terminado o café da manhã, deu outro peteleco na orelha da irmã. Desta vez ouviu uma reclamação condescendente, como quando eram adolescentes:
— Vou te dar um cascudo se você não sair daqui agora!
Pâmela apenas riu. Saiu, zombando da irmã, que a olhava com semblante alegre, quase maternal.
A mãe comentou que estava feliz com o progresso da caçula. O pai concordou, enquanto misturava um pouco de leite da roça no café.
Após chegar da faculdade na noite daquele mesmo dia, Pâmela pegou uma corda no armário de velharias do pai e se enforcou.
As brincadeiras da manhã não passavam de um prenúncio.
A mãe encontrou um poema na escrivaninha, debaixo do computador:
A vida é uma guerra sem vencedor A dor atravessa o soldado e o obriga a lutar Mas no fim, todos morrem, exceção não há. A vida é um caminho de morte Por onde passam fracos e fortes. Com amor, Pã
Sem entender direito, a mãe chorou amargamente. O cemitério instalado na sua memória tornou-se um pouco maior, acolhendo uma filha, um filho, inúmeros cães de estimação, um sogro e uma sogra, os pais que ainda vivos não se lembram dela, os amigos da infância, as amigas que morreram de depressão, o rubro-negro que nunca mais foi importante… As imagens de lápide trazem Estrelas-de-Davi, mas não pertencem a judeus. Pâmela era cristã, como toda a família. Não bastasse isso, estava doente pelo menos desde o acidente de carro.
Agora é a mãe que não consegue mais dormir.
* Este conto conquistou o primeiro lugar na versão interna do Prêmio Castro Alves de Literatura 2024, realizado pela Academia Teixeirense de Letras – ATL.
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