O preço de uma ilusão: quem sou eu agora que sei não ser ninguém?

A depressão é a perda de uma ilusão, livro mais recente de Juan-David Nasio publicado no Brasil, está organizado em cinco lições originalmente pronunciadas em Paris em conferências para profissionais de saúde mental. Numa linguagem didática até mesmo para o público leigo, o psicanalista elabora hipóteses, sustentando-as mediante apresentação de casos clínicos.

Cada lição objetiva propiciar uma contribuição relevante para o campo da saúde mental, sobretudo da psicanálise. Se na primeira lição o autor empreende uma conceituação da afecção, nas lições seguintes responde se qualquer pessoa pode se deprimir e, ainda, como tratar pacientes depressivos. Na última lição, o autor elabora uma teoria concernente à depressão covid-19, enfatizando que esta não se assemelha à depressão clássica, mas consiste numa variante ancorada no acúmulo de angústia.

Na depressão clássica ocorre a tristeza profunda derivada da perda traumática da ilusão.

Na primeira lição, ocupa-se de conceitualizar a depressão. Traz, portanto, dois pontos de vista sobre a patologia: um de caráter descritivo e outro de caráter psicanalítico. O ‘ponto de vista descritivo’, segundo o autor, compreende a depressão como “um conjunto de sintomas observáveis, sendo o mais importante deles um humor anormalmente triste” (NASIO, 2022, p. 14). A crítica dirigida por Nasio a essa concepção leva em consideração uma definição restritiva, fundamentada tão-somente naquilo que a depressão apresenta explicitamente: humor triste.

Para Nasio, as nosologias descritivas – como aquelas sustentadas no DSM – produzem pouco sentido no que concerne à compreensão das etiologias mais profundas da depressão como estado de sofrimento humano precisamente porque compreendem o estado depressivo simplesmente através de uma classificação nosológica dos fenômenos, dispensando completamente os fatores causadores ou, quando muito, atribuindo o fenômeno depressivo à hipossuficiência de neurotransmissores no sistema nervoso.

Neste sentido, dizer que a depressão constitui-se um distúrbio do humor ou um transtorno do estado emocional não é suficiente para produzir as pistas necessárias à compreensão etiológica do fenômeno, mas apenas dos sintomas observados. Além disso, não deixa uma abertura epistemológica sólida para a compreensão acerca da origem desse distúrbio do humor, não obstante a hipótese neurológica apresente algum lastro etiológico, ainda que amparado preponderantemente nas condições anatomofisiológicas do funcionamento neuronal.

Embora reconheça que “a tristeza depressiva coexiste com uma desordem cerebral” (NASIO, 2022, p. 154), Nasio lembra que a depressão continua sendo um enigma, especialmente porque as formas de acesso ao cérebro vivo são, ainda, necessariamente indiretas, o que dificulta pesquisas que proporcionariam uma compreensão mais acurada do seu funcionamento. Outrossim, um raciocínio derivado da argumentação do autor reacende inevitavelmente a antiga discussão sobre as fronteiras entre o psíquico e o fisiológico, ou seja: são as emoções que fazem o sistema nervoso secretar os neurotransmissores ou são os neurotransmissores que possibilitam a existência das emoções?

Em outras palavras: são as emoções ligadas ao prazer que leva o sistema nervoso a secretar endorfina, serotonina, dopamina e oxitocina? Ou, ao contrário, é a liberação desses neurotransmissores que possibilita a experiência do prazer? Essa discussão parece encaminhar a um ciclo interminável de argumentos que se assemelharia a um cão correndo incansavelmente atrás do próprio rabo, ou seja, a um esforço fadado ao insucesso (porque a satisfação plena não pode ser experimentada; do contrário, o prazer se completaria e seria terminal, convertendo-se em gozo).

Se a depressão não passasse de um simples resultado da hipossuficiência neurotransmissora, os tratamentos hormonais teriam uma eficácia inelutável. Contudo, excetuando-se alguns tratamentos à base de estrógenos utilizados para a depressão no climatério (MANZINI, 2023), um número considerável de pacientes depressivos não responde favoravelmente ao tratamento hormonal, necessitando conjuntamente de tratamento psíquico. Isso coloca em relevo a tese do autor a respeito da possibilidade de haver uma etiologia psíquica da depressão e, portanto, torna plausível o ponto de vista psicanalítico sobre a depressão. Além disso, faz-nos repensar a necessidade de um diagnóstico diferencial para reconhecer o ‘tipo de depressão’, construindo, em seguida, uma adequada estratégia terapêutica.

Entretanto, aquilo que o autor designa de ‘ponto de vista psicanalítico’ aborda a depressão através de uma hipótese etiológica fundamentada no fator psíquico, não apenas fisiológico. Neste sentido, a argumentação parte da concepção de que a “depressão, mais do que um distúrbio do humor, ocorre quando uma ilusão infantil de onipotência narcísica resvala para uma desilusão devastadora de sentir que não se é mais nada” (NASIO, 2022, p. 16), tornando a depressão, antes de qualquer coisa, uma patologia da desilusão.

Para o autor, portanto, a depressão coloca em marcha a recorrente pergunta: quem sou eu agora que sei não ser mais nada? Isto é, no fenômeno depressivo, o sujeito perde uma ilusão muito importante que mantinha a sua fantasia narcísica, egocêntrica. Através dessa perda, o sujeito percebe-se sem chão, perdido, incapaz de formular uma resposta suficientemente convincente à questão: quem sou eu agora que perdi o objeto que supostamente sustentava a minha identificação (ou seria “identidade”?)?

No lugar da questão “o que o Outro quer de mim?” (LACAN, 2005), o neurótico depressivo questiona-se “quem sou eu para que o Outro queira algo de mim?”; e assim chega à terrível conclusão de que não é nada, não merece ser ou ter nada, não é digno de estar no mundo e por isso menospreza-se a todo instante. E, geralmente, direciona a hostilidade a si mesmo.

Para explicar didaticamente a patologia depressiva, o autor defende que existem dois acontecimentos perturbadores que podem levar o sujeito à depressão. O primeiro é um trauma psíquico e, o segundo, um choque emocional. É mediante a reação do sujeito a esses acontecimentos (e suas possíveis combinações) que a depressão poderá ou não se instalar. Assim, Nasio considera que a depressão ocorre em quatro tempos: origina-se de um trauma psíquico infantil experimentado psiquicamente como devastador (1º tempo), seguido da instalação de uma neurose pré-depressiva latente baseada na desilusão (2º tempo), mas que será desencadeada apenas se houver um choque emocional (3º tempo), levando o sujeito a cair vítima da depressão (4º tempo).

Não obstante, Nasio reconhece que a depressão pode estar relacionada a múltiplos fatores: genéticos, neurobiológicos, psíquicos e psicossociais. No entanto, a corrente que defende uma etiologia psíquica não desconsidera os avanços no campo psicofarmacêutico, mesmo reconhecendo a perceptível ineficácia dos fármacos no tratamento de transtornos depressivos quando não combinados com o processo psicoterapêutico. E mais uma coisa: as psicoterapias não produzem efeitos colaterais.

REFERÊNCIAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5: manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

MANZINI, Isabelle. Depressão no climatério: a queda de hormônios que antecede a menopausa aumenta o risco de desenvolver sintomas depressivos, mas fatores físicos e ambientais também influenciam. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/mulher-2/menopausa/depressao-noclimaterio/#:~:text=O%20dr.,em%20conjunto%20com%20a%20paciente. Acesso em: 10 jan. 2023.

NASIO, Juan-David. A depressão é a perda de uma ilusão. Tradução Clovis Marques. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

 

Resenha publicada originalmente na Revista Espaço Acadêmico, da Universidade Estadual de Maringá.

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