No livro Pele Negra, Máscaras Brancas, o psiquiatra antilhano incursiona pelas alterações produzidas pelo colonialismo no psiquismo dos sujeitos colonizados.
Segundo Fanon, o sujeito negro (ele fala dessa perspectiva), ao chegar na França, assume uma máscara branca, tornando-se simbolicamente “embranquecido” – por aprender e usar com perfeição a fonologia da língua metropolitana – como estratégia de sobrevivência na metrópole. Assim, “quanto mais o sujeito negar a sua negritude, mais branco será”, escreve Fanon.
Que o racismo existe, isso é visível. Que negros, judeus, ciganos e outras etnias sofrem discriminação constante baseada em seus fenótipos e em suas origens, também não há dúvidas.
Pensando nisso, Fanon elabora um axioma interessante: “todo idioma é uma forma de pensar” (p. 38) e “falar é existir absolutamente para o outro” (p. 33). É óbvio que o psiquiatra antilhano não se refere apenas ao idioma, como código linguístico de um povo, mas à própria capacidade de produzir e comunicar sentido, característica estruturante de um “falasser”.
Trata-se da linguagem como esse diferencial humano. Nós somos seres do simbólico. Portanto, quando a França utiliza, nas suas colônias africanas, métodos que incentivam as crianças a repetirem frases como: “nossos ancestrais, os gauleses”, trata-se não apenas de um domínio econômico, mas de uma estratégia de domínio cultural, linguístico, cujo objetivo é passar a ideia de que a França é uma nação transoceânica.
Sendo essa “nação transoceânica”, a França coloca-se como apta a receber as populações colonizadas como “filhos” (Léopold Sédar Senghor, por exemplo, mesmo após tornar-se presidente do Senegal, recusou-se a abdicar de sua cidadania francesa).
O lugar da linguagem nos processos de dominação também é representado na literatura, especialmente no livro “1984” (George Orwell), com a institucionalização da “novilíngua”. Curiosamente, a distopia orwelliana apresenta a regulação do vocabulário como estratégia política de limitação do pensamento, diminuindo consideravelmente o horizonte de simbolização dos sujeitos frente aos eventos do mundo.
A estratégia francesa foi incutir nos colonizados os seus signos linguísticos, fomentando as chamadas neotradições nos povos colonizados.
Falar é existir absolutamente para o “Outro”. Note que, usando o conceito lacaniano de grande Outro, a frase de Fanon ganha um sentido mais amplo. De fato, existimos para o Outro na medida em que participamos da cadeia significante. E, por isso, quando questões de natureza racial aparecem na clínica, devem ser investigadas a fundo. Muitos sujeitos sofrem os efeitos da alienação ao discurso do Outro, seja no contexto colonial ou em outros contextos em que é o Outro que nos “cria” como sujeitos, na medida em que, como espelhos, refletimos os desejos expressos por esse outro (o pequeno outro como protótipo do grande Outro).
Embora sejamos constituídos – como sustenta Lacan – através do discurso do Outro, a partir do estágio do espelho, devemos identificar as partes desse discurso que nos provoca sofrimento, tornando-nos alienados à vontade alheia.
O setting analítico é o lugar privilegiado de questionamento dessa alienação. É no setting analítico que encontramos a liberdade necessária para reconstituir o “vocabulário” outrora esquecido e resgatar os significantes soterrados sob o desejo do Outro.
O discurso analítico é, por natureza, anticolonial.
A psicanálise é uma ferramenta de descolonização da alma.
- Desenvolvo melhor esta ideia no artigo Mal-estar no colonialismo: aproximações psicanalíticas com a história africana, publicado na Revista Espaço Acadêmico.