África e Europa no Ensino de Filosofia

Ensino de Filosofia: do universo eurocêntrico ao pluriverso epistêmico é o meu livro mais recente, publicado em 2020, pela Editora Fi[1]. Resultado de uma percepção minha ao longo de mais de uma década como docente de Filosofia na escola pública ao ver um público majoritariamente negro sub-representado no debate filosófico, o livro só foi materializado no decurso do mestrado em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER/UFSB), quando me propus a pensar os problemas do ensino de Filosofia na educação básica pública. Escrevo desde criança, mas nunca havia me desafiado a um projeto de escrita tão grandioso como este. Apesar do receio, eu resisti, persisti e realizei, por considerar que estudantes e professores da escola pública merecem uma reflexão diferente, menos reducionista da Filosofia. Por isso, deixei de lado a escrita literária durante dois anos para me dedicar à pesquisa e, posteriormente, à escrita deste livro.

         Mas o que este livro de apoio pedagógico tem de diferente de todos os outros no campo da Filosofia? Bem, os manuais e os livros de apoio pedagógico privilegiam as supostas origens gregas do conhecimento filosófico, sequer permitindo aventar-se outras possibilidades e argumentos. Frequentemente, as publicações brasileiras que versam sobre o assunto parecem repetir um certo mantra de reforço à filosoficidade grega. Assim, o grande diferencial deste livro, na minha opinião, é buscar maneiras de estabelecer intercâmbios epistemológicos simétricos entre as tradições filosóficas europeia e africana, indicando, aliás, a existência da reflexão filosófica entre os antigos egípcios, muito antes dos gregos.

         Sim, o livro começa questionando o falso consenso de que a Filosofia surgiu na Grécia Antiga, com Tales de Mileto. Mas para fazer uma afirmação dessa natureza foi necessário buscar na antiguidade egípcia as origens do pensamento de Imhotep, Akhenaten, Pitah-Hotep, que viveram muito antes do surgimento da Hélade. Precisei importar livros de Portugal, Espanha, França, Estados Unidos e Moçambique, porque no Brasil a bibliografia necessária para a pesquisa não poderia ser encontrada. Além disso, várias das obras pesquisadas não estavam disponíveis em português; por este motivo o livro contém diversas referências em francês, inglês e espanhol.

        Tanto José Nunes Carreira (Filosofia Antes dos Gregos) quanto Fernando Susaeta Montoya (Introducción a la filosofía africana) foram especialmente importantes para essa empreitada – não somente porque são europeus e rejeitaram o mantra desde muito repetido –, mas especialmente porque empreenderam uma busca inigualável das raízes do pensamento filosófico no antigo Egito, demonstrando a anterioridade egípcia no tocante a variados campos da reflexão filosófica. Os achados de Carreira o levaram a afirmar que a filosofia moral teve começo no vale do Nilo cerca de 2700 anos a.C. com Imhotep. Segundo os registros – inclusive arqueológicos –, os egípcios foram os primeiros moralistas da humanidade (Chupa essa, Kant!). Isso obviamente não reduz a importância da filosofia construída a partir da Europa, mas insere novos elementos na discussão filosófica num ponto que até então havia ficado obscuro.

         Ah, mas não é só isso. O livro ainda explica como o colonialismo “inventou” o continente africano, relegando seu povo à condição de humanos incompletos, semi-humanos, através de noções preconcebidas de sua cultura. Filósofos importantes como Kant, Hegel e Hume contribuíram para esta concepção reforçadora do racismo na medida em que demonstravam sua concepção preconcebida dos africanos e pessoas não brancas de modo geral. Dentre os escritos desses importantes pensadores europeus, pode-se encontrar juízos preconceituosos em relação às pessoas negras, especialmente africanas. Por isso, não podemos pensar a história do racismo sem considerar as ideias desses filósofos, uma vez que seus escritos foram amplamente divulgados por toda a Europa e Américas.

         Em contraponto, recheei o livro de autores negros, africanos e da diáspora. O objetivo era trazer as ideias desses pensadores para o centro da conversa. Sim, o livro é uma conversa, uma troca de ideias entre os filósofos, o autor (eu, no caso) e os leitores. E nessa troca de ideias, os leitores são levados a compreender a importância de se colocar no centro da discussão figuras como Cheikh  Anta Diop, Frantz Fanon, Kwame Anthony Appiah, Achille Mbembe, Marcien Towa, Ergimino Mucale e tantos outros grandes pensadores pouco conhecidos no Brasil, mas cujas reflexões são indispensáveis para descortinar diante de estudantes e professores a história não contada da filosofia produzida em África, no presente e no passado.

         Talvez o leitor esteja se perguntando neste momento quanto custa o livro. Pois bem, sendo o resultado de uma pesquisa de mestrado empreendida no âmbito de um programa de pós-graduação de uma universidade federal, decidi disponibilizar a versão digital do livro gratuitamente para todas as pessoas que desejarem estabelecer contato com as ideias ali expressas.

         Mas, enfim, por que ler o livro?

         Porque Ensino de Filosofia: do universo eurocêntrico ao pluriverso epistêmico demonstra categoricamente que é possível filosofar em todas as línguas, a partir de todas as raças e de todos os lugares, porque a Filosofia é pluriversal. Mas a geopolítica hegemônica do conhecimento não gosta quando questionamos o racismo antinegro embutido nas suas premissas autodeclaradas universais.

Por isso este livro é tão fundamental.

Faça download gratuito do livro: www.editorafi.org/777ensino

[1] Artigo publicado originalmente no quadro Saberes d’ACasa, no site da Casa Tombada (https://acasatombada.com.br/saberes-da-casa-africa-e-europa-no-ensino-de-filosofia-por-mauricio-de-novais-reis/).

Please follow and like us:
Pin Share