EPIFANIA: Uma Leitura Psicanalítica dos Quadrinhos – BRAINIAC

Começo esta epifania com uma confissão singela: sempre fui nerd, mais do tipo CDF do que propriamente nerd. Mas à medida em que o meu filho se aproxima da adolescência – e demonstra interesse crescente pelos quadrinhos de heróis e pelas mitologias grega e nórdica –, percebo que o traço nerd constitui um caráter intergeracional.

Embora exista sempre a possibilidade de tratar-se de uma “contaminação” familiar, uma vez que meu filho sempre teve acesso a livros e quadrinhos sobre mitologia, literatura, filosofia e heróis, não posso deixar de admitir que tenho gostado de nossas conversas diárias sobre figuras ficcionais que embalavam as minhas fantasias juvenis (e que hoje embalam as dele).

Numa dessas conversas, na qual refletíamos sobre um dos vilões mais admirados por ambos – e certamente por muitas outras pessoas com quem já conversei –, experimentei uma epifania interessante:

E se Brainiac, para além da representação ficcional apresentada pelos quadrinhos, indicar um determinado tipo de personalidade narcísica muito presente nos seres humanos?

Assim como os mitos, no fundo, representam determinados desejos humanos reprimidos, que só podem ser expressos “disfarçados” através de narrativas como Édipo Rei, Antígona, Narciso, Electra, etc. – derivando disso o seu valor psicanalítico –, não seria completamente absurdo imaginar que as narrativas ficcionais modernas sejam, a exemplo das antigas, representações de desejos que não encontraram caminhos livres para a sua realização, tornando-se expressos mediante a construção de um arcabouço ficcional aparentemente despretensioso, associado tão-somente ao entretenimento. Se, como disse Lacan, a verdade tem estrutura de ficção, podemos buscar na ficção os indícios de uma realidade psíquica pouco explorada, mas que demonstra a constituição de uma mitologia individual nos sujeitos (LACAN, 1995, p. 259).

Quem é Brainiac?

Brainiac é um personagem do universo dos quadrinhos da DC Comics, cuja primeira aparição ocorreu em 1958. Embora nas animações e séries de TV (Justice League, Static Shock e Smallville, por exemplo) apresentem o personagem com aparências variadas, nos quadrinhos é geralmente representado como um humanoide de pele verde que chegou na terra para encolher várias cidades – dentre elas, Metrópolis, a cidade-ambiente do Superman. Sua intenção inicialmente era reconstruir o planeta Bryak a partir dessas cidades, tornando-se, novamente, seu governante supremo.

Todavia, sua tarefa de encolher cidades não seria facilmente realizada, pois o último sobrevivente de Krypton viria combatê-lo. E foi assim que Superman descobriu que Brainiac havia encolhido a cidade kryptoniana de Kandor, recuperando-a e guardando o frasco que a continha na fortaleza da solidão, na esperança de um dia encontrar uma maneira de fazer a cidade e seus habitantes voltarem a seu tamanho original.

Como vimos, Brainiac era um vilão. Maléfico, como só os vilões conseguem ser. Então, por que alguém desprovido de vilania se identificaria com um cara assim?

As Muitas Faces de Brainiac

Esta pergunta pode ser respondida considerando-se a faceta primordial do vilão humanoide. Esclareça-se que Brainiac não é um ser humano, uma vez que é alienígena – como o Superman. Mas não apenas isso: Brainiac é, na verdade, um supercomputador desenvolvido pelo cientista kryptoniano Jor-El[1] (pai de Kal-El[2], isto é, Clark Kent) com a finalidade de armazenar todo o conhecimento kryptoniano antes da destruição de Krypton. A verdadeira natureza de Brainiac é, portanto, androide; e foi criado com o objetivo de acumular todo o conhecimento disponível (quando começar a revolução das máquinas, o android do Google fará como Brainiac?).

Brainiac é apresentado como um supercomputador que drena o conhecimento dos planetas, destruindo-os em seguida. Sua inteligência é o que o torna celebrado desde sua primeira aparição nos quadrinhos do universo DC comics.

Mas que relação pode haver entre a personalidade do Brainiac com a personalidade humana?

Torna-se, primeiramente, importante enfatizar que o personagem é uma fabricação simbólica humana, que produz um sentido e se conecta com a fantasia humana, especialmente dos adolescentes denominados de nerds. Assim, trata-se, neste texto, de pensarmos as razões que levaram os criadores à fabricação desse personagem ao mesmo tempo execrável e admirável (parece-me um fato irrefutável de que existe uma ambivalência em relação ao vilão).

Teria alguma relação com a produção fantasmática inconsciente? O personagem seria uma possível chave para a compreensão de certos tipos de personalidades? Poderíamos arriscar uma interpretação fundamentada na “mitologia dos quadrinhos”?

Talvez.

A Mente Humana

O intelecto humano possui a capacidade de indexação de conteúdo, possibilitando a conexão de um conteúdo novo a outro, mais antigo. Assim, a discussão sobre o maléfico personagem da DC Comics, remeteu-me imediatamente a um artigo lido alguns anos atrás, a propósito de um seminário sobre a estrutura perversa que eu pronunciaria na Escola Freudiana de Teresina. Escrito pelo psicanalista Alberto Eiguer, o artigo aborda a perversão narcísica, caracterizando-a mediante os achados epistemológicos da Psicanálise.

Eiguer afirma que o conceito de perversão narcísica:

Foi interpretado como um equivalente da perversão moral, perversão de caráter ou perversidade. […] A perversão narcísica deveria ser considerada uma forma de perversão moral, aquela que leva o narcisismo autossufciente aos limites extremos de sua ação, mas não um sinônimo de perversão moral. Isso não diminui a importância do narcisismo patológico em cada quadro de perversão moral (EIGUER, 2014, p. 93).

Vale ressaltar que o narcisismo ocorre como um fenômeno naturalmente humano, integrador da formação do registro imaginário a partir do estádio do espelho. Não apenas Freud, mas também Lacan aponta para essa compreensão do narcisismo. Todavia, em alguns indivíduos o mecanismo narcísico operacionaliza processos extremamente prejudiciais a outros indivíduos, o chamado “narcisismo patológico”.

Nesta perspectiva, Eiguer aponta, ainda, para a frequente “combinação do narcisismo com dois outros elementos: a destrutividade e a tendência à extraterritorialidade – ou seja, o sujeito tenta comprometer outra psique” (EIGUER, 2014, p. 93). No tocante à tendência de comprometer outra psique, evidencia-se esse traço narcísico no personagem dos quadrinhos: encolher as cidades tem como objetivo a restauração do planeta Bryak, o que o possibilitaria restaurar também seu governo tirânico. Portanto, Brainiac empreende, inicialmente, uma tentativa de restauração de seu poder como governante supremo de um planeta, levando o seu desejo narcísico a afetar a todos os planetas pelos quais passou.

Aspectos da perversão narcísica são encontrados em síndromes afins ou derivadas, tais como o assédio moral e a predação, repertoriadas nos últimos anos com o intuito de destacar a natureza não sexual da perversão em jogo (EIGUER, 2014, p. 94).

A Perversão Narcísica

Diversamente da estrutura perversa originariamente estabelecida no corpo teórico-metodológico da psicanálise, fortemente caracterizada pela presença da sexualidade, na perversão narcísica o sexo não aparece diretamente. Isso, obviamente, não significa que os perversos narcísicos sejam completamente dessexualizados, mas que seu interesse imediato não contempla a sexualidade como finalidade, de maneira explícita como via de obtenção de prazer. O sexo não aparece senão inconscientemente, como uma matriz compreensiva do prazer, provocando a sensação de prazer em ações aparentemente desprovidas do aspecto sexual.

Como Brainiac, o perverso narcisista possui um objetivo muito bem definido. Habitualmente, segue esse objetivo até as últimas consequências, mesmo que isso signifique inviabilizar a vida de outras pessoas. Assim, persegue impetuosamente seu objetivo, como se as outras pessoas fossem simples objetos que podem ser usados para a obtenção de seus objetivos – lembra ou não lembra o vilão verde da DC Comics?

O objetivo buscado é a utilização dos recursos do outro; o paciente teria necessidade das competências desse outro; gostaria de se nutrir de sua vitalidade, de seu entusiasmo (EIGUER, 2014, p. 95).

Assim como o vilão extraterrestre se nutre dos conhecimentos de suas vítimas, os perversos narcisistas nutrem-se dos recursos do outro. Ou seja, esses indivíduos se aproveitam das fragilidades emocionais das vítimas para controlá-las, governando-as segundo o seu bel-prazer.

Outro fator preponderante é o nível de inteligência dos sujeitos perversos narcisistas. Costumam controlar suas vítimas a partir da manipulação de suas próprias fraquezas morais, emocionais e intelectuais, levando-as a agir exatamente como gostaria que elas agissem.

Não obstante a caracterologia do perverso narcisista remeta-nos ao quadro psicopatológico modernamente denominado de psicopatia, devemos evitar conclusões apressadas, pois referem-se a duas estruturas psíquicas diferentes que, entretanto, partilham de apenas alguns sintomas em comum, mas cuja semiologia diverge perceptivelmente.[3]

Um Vilão de Inteligência Superior

Observando as qualidades cognitivas de Brainiac, assim como a segurança com que se comporta, entendemos as razões que levam tantos aficionados por quadrinhos a simpatizarem com o vilão. Isso, obviamente, não significa que os admiradores do personagem sejam como ele, mas demonstra que, ao menos no nível das fantasias, os seres humanos buscam a capacidade de se movimentar num mundo assustador e perigoso com a mesma segurança e autoconfiança.

Daí Freud ter dito que a neurose é o negativo da perversão. Isso significa que o neurótico recalca, enquanto que o perverso coloca em ato. Trocando em miúdos: o neurótico recalca os desejos que conscientemente são considerados desagradáveis, sujos e imorais, negando-se a colocá-los em ato. Se esses elementos “vazam” da repressão é sob disfarce, na forma de sintoma.

Já o perverso coloca seus desejos em ato sem experimentar o sentimento de culpa, assim como faz Brainiac.

Embora indubitavelmente poderoso, Brainiac não consegue levar seus planos a êxtio porque depara-se com alguém ainda mais poderoso: Kal-El. Mas surge uma dúvida: músculos são mais importantes que cérebro? Força vence inteligência? Por que Brainiac, apesar de seu intelecto de nível 12, vê-se derrotado pelo homem de aço?

Além disso, por que Brainiac e Kal-El constituem personalidades diametralmente opostas? A diferença estaria apenas no fato de um ser uma máquina e, por isso, desprovido de sentimentos?

Neurose e Perversão no Universo dos Quadrinhos

É possível que a distinção da personalidade de ambos esteja ligada à maneira como cada um viveu sua “infância”. Existe um fator interessante que caracteriza os dois tipos de personalidade: a psicanálise explicaria que Brainiac, não tendo uma figura paterna para impor limites, embora conheça o significado da autoridade paterna, ignora sua função simbólica de interdito. Ou seja, o vilão, como um perverso, nega a realidade da castração. Clark, por outro lado, conheceu a autoridade paterna como uma função simbólica de acesso ao Outro. E é por isso que frequentemente se coloca na posição daquele que deve irremediavelmente salvar o mundo de vilões malvados como Brainiac.

A metáfora paterna incide sobre os sujeitos, tornando-os partícipes do universo simbólico, ordenado pela lei. O perverso simplesmente recusa-se a aceitar o interdito imposto pela castração, passando a ocupar o lugar simbólico do pai. Lacan interpreta a père-version como “versão do pai” (LACAN, 2007), ou seja, no jogo de palavras o sentido de perverter transmite a ideia de perverter o nome-do-pai como impositor da lei. Assim, a perversão aparece no ensino lacaniano como a tarefa de destituição do pai do lugar do Outro, a fim de que o sujeito perverso ocupe o lugar paterno de determinação do interdito sobre os demais indivíduos.

O androide alienígena, tendo ou não sido programado pelo general Zod para seus objetivos nefastos, sobrevive à programação, isto é, à tentativa de imposição da vontade do general [como pai]. Isso equivale a dizer que Brainiac recusa a castração, recusando, assim, a realidade simbólica da falta.

Mas o leitor talvez pense: Ah… pelo contrário, Brainiac está imitando Zod na vilania. Sim, isso faz sentido. Contudo, o universo DC Comics não deixa transparecer qualquer tipo de identificação do supercomputador em relação ao general; pelo contrário, aparenta, antes, que Brainiac busca o poder somente para si, desconsiderando completamente o lugar de Zod como um possível nome-do-pai.

Clark e o Sofrimento Neurótico dos Heróis

Nesta perspectiva, podemos comparar a posição de Clark Kent, como filho amado dos humanos Martha e Jonathan, que se submete integralmente ao interdito paterno imposto pelo pai simbólico. Aliás, seu sentimento de culpa – especialmente em Smallville – diante da humanidade “perdida” leva-o a empreender tentativas de salvação das pessoas em perigo, sentindo-se, inclusive, culpado quando seus esforços não resultam no objetivo esperado. Ou seja, sente-se culpado quando não consegue salvar alguém.

Talvez o sufixo “el” inserido nos nomes dos personagens possua a implicação de transformá-los em deuses protetores. Contudo, as qualidades redentoras de Kal-El não parecem ter relação com o sufixo “el” no seu nome kryptoniano, tampouco teria alguma relação com o fato de ele ser descendente de Jor-El, uma vez que a personalidade de seu tio Zor-El também é, no mínimo, intrigante. Enfim, a família cujo nome termina em “el” não se constitui essencialmente de deuses bondosos e redentores. Assim, só resta a interpretação da lei paterna que governou o crescimento de Clark na cidadezinha do Kansas.

Em apoio a esta conclusão, invocarei o axioma do grande psicanalista francês, que diz: todos somos adotados. Com isso, Lacan desmitifica a paternidade biológica como formadora da personalidade e sanciona a perspectiva simbólica na constituição do sujeito. Se Clark possui afetos tão humanos como culpa, solidariedade, angústia e humildade – especialmente diante do campo simbólico da lei – significa que introjetou os valores familiares terrestres.

Enquanto Clark apresenta-se como resultado do interdito paterno, Brainiac é apresentado como um sujeito determinado pela personalidade extremamente narcísica e perversa.

Até a próxima leitura psicanalítica dos quadrinhos!

REFERÊNCIAS

EIGUER, Alberto. A perversão narcísica, um conceito em evolução. Revista Brasileira de Psicanálise. Vol 48, n. 3, 93-104, 2014.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, v.7. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. (1956-1957). O Seminário de Jacques Lacan, livro 4: As Relações de Objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1976. – Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

[1] Como acontece nos mitos, os quadrinhos também costumam apresentar versões diferentes para uma mesma narrativa. Algumas versões o descrevem como um alienígena oriundo de um planeta coberto de máquinas e computadores, chamado Colu, fazendo de Brainiac um coluano. Outras, como a série Smallville, o descrevem como kryptoniano. Essas versões podem ser explicadas pelo fato de o vilão poder transferir sua consciência para hospedeiros. Fiquemos aqui com a segunda versão, na qual Brainiac sonega informações de Jor-El sobre a iminente destruição de Krypton, vindo a deixar o planeta para se salvar da explosão.

[2] Uma curiosidade linguística: segundo o Dicionário Vine das Palavras do Antigo e do Novo Testamento, o sufixo “el” no hebraico bíblico designa “deus”. Por isso as palavras “Israel”, “Gabriel”, “Daniel” e “Samuel” aparecem na bíblia. Seria por isso que o Superman é tão poderoso, quase como se fosse um deus?

[3] A personalidade psicopática estaria mais vinculada a personagens como Darkseid e Coringa. Pretendo desenvolver estudos posteriores com esses dois personagens ficcionais.

 

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