A Bailarina

Revidava o piso com bramidos grotescos aos pés delicados da bailarina. Era uma sala vazia, espaçosa, de frente para os edifícios mais majestosos da cidade. Um alarido musical, docemente envolto na emoção de cada passo, dava-lhe a sensação de liberdade e um sabor inexplicável de transcendente satisfação espiritual. Deslumbrava-se a pobre bailarina dos edifícios históricos à sua visão, enquanto a dança dava-lhe êxtase descomunal. O pavilhão inteiro a observava dançar. Invadia-lhe uma, sempre maior, felicidade, uma sensação de satisfação, um desejo esquipático de viver energicamente cada milésimo de segundo, ainda que pouco durasse. Destarte, dançava; era o que somente aprendera fazer durante toda a vida. Reuniria as vastas emoções que lhe drenavam as energias e que, não cedo, far-lhe-iam parar de dançar. Amava a dança, a música, o canto lírico, amava a arte acima de qualquer coisa; tinha pela arte um amor quase irracional e religioso, era como um ópio que transplantava-a para lugares longínquos e agradabilíssimos onde as terríveis sensações jamais a alcançariam. O pavimento do sexto andar suportava a insistência do compasso ritmado, envolto inequivocamente à planta sofisticada dos pés angelicais da bailarina. A bailarina bailava seu bailado inexoravelmente inabalável. Sua malha colada ao corpo dava-lhe uma aparência esbelta e atraente, um trejeito de sagacidade, mas delicioso. Suas pernas flexionadas davam-lhe a delicadeza de cada movimento, como um gato que, lançado no ar, estica-se à procura de apoio e, por fim, aterrissa a salvo.

Sofia, menina, mulher e filha, dançava sua coreografia, e desejava que fosse a última dança, como uma última valsa, um adeus incólume, incompleto, inverossímil.

A criada observava-a, desde a porta entreaberta, dançar entre as janelas onde despontava o sol daquela manhã triunfal de domingo.

Era mês de agosto e as folhas quase primaveris sob a brisa balouçavam à sensatez indescritível das ruínas do corpo carnal. Sofia não se permitia imaginar primavera alguma, a menos que a vida se derramasse em seus ombros, braços, mãos e calcanhares. Recebera há poucos instantes a notícia fatal. Jamais seria novamente a mesma, jamais queria ser novamente a mesma, jamais tencionaria ser novamente a mesma de outrora, fosse primavera ou verão. Aparecera-lhe entre os lábios finos e bem desenhados um sorriso dos mais saudosos. Tinha um peremptório olhar de decisão e crueldade, em que a vida passava como um drama europeu fantasticamente interpretado, em que, no meio da depressão da música, caísse como folhas gastas e sagazmente incontáveis a máscara de sua categórica coreografia.

À porta, a criada observava-lhe o semblante perturbado, o olhar dissuadido, o sorriso corrompido e bucólico que exalava de sua pele. Queria correr, navegar entre os estreitos canais, desfrutar as veementes sensações da glória de viver; porque o segredo está além do que a vida pode prever. Via no sol um prelúdio de algo surreal, como os arautos da Europa na idade medieval. Dançava. Somente entregava-se ao sabor indolor da arte. Deslumbrava-se nos braços do amor, do seu amor matinal. Via-se estranha no espelho da sala desabitada onde seu corpo se contorcia belamente.

Na rua os automóveis deixavam escapar ruídos, os homens deixavam escapar gritos, da vida escapavam gemidos, dos mortos condolências se ouviam. Mas Sofia, entregue a si num ato magistral, não entendia a linguagem do mundo; figurava-se apenas o ritmo, o sopro coloquial das palavras, dos ruídos, dos gemidos, das linguagens desprovidas de qualquer sentimento real. A janela, de vidro inquebrantável, jazia ferida em sua frente, e Sofia, inconsolável, tentava ser valente. Dançava, lançava-se nos braços de seu anjo, seu dono, seu mundo, longe dos olhos tão habituados das plateias a vê-la dançar.

Pensou nas folhas de outonos anteriores, em frutos que o solo jamais produziu. Pensou nas vitórias, nas derrotas, em todas as lutas que pareciam inúteis. Pensou que tudo poderia ter sido diferente, que não precisava ser assim, desprovido de sentido e involuntário. Martelava-lhe na cabeça como que com marreta concreta, real, a sensação de que na vida tudo é fatal. Martelava-lhe. E mesmo assim, a dança a fazia esquecer de tudo o que sofria. Martelava-lhe a memória das antigas paixões, e os arrependimentos, a dedicação, o medo de não existir. Queria pensar em coisas gloriosas e pitorescas, mas conseguia apenas lembrar de seu corpo, infecto friamente entregue à vala. Não é fácil pensar estas coisas, mas, como diria Freud numa conversa imaginária com Dostoiévski acerca do remorso de Raskólnikov, a dureza da vida faz-nos desejar a morte.
Sofia não lembrava de Freud. Preferia não se lembrar.

Meditou nos amores e descobriu que jamais amara de verdade. Se foi dura essa descoberta não sabemos e talvez jamais saibamos ao certo o que se passou naquela manhã. O que sabemos é o que contam as pessoas na rua; é o que comentam as mentes brilhantes, os psicólogos, antropólogos e filósofos do cotidiano. Nós, no entanto, não podemos ou não temos cultura suficiente para compreender. Sabemos apenas que na vida tudo é consumível, a própria vida o é.

Os jornais da época noticiaram o acontecido.

Os velhos da praça disseram bonito o acontecido, embora desaprovassem completamente a metodologia.

Os pardais provavelmente amaram o acontecido, malgrado não soubessem como expressá-lo.

Os cães foram, no mínimo, indiferentes ao fato.

A vida prosseguiu como sempre. O sol nasceu novamente, como sempre, depois de uma tempestade. Mas, e Sofia, onde estará? Quem dirá o que pensou? Quem dirá o que sentiu? Quem dirá se ao menos existiu? Que Moscou a reconheceria? Ou seria Praga? Ou Viena?

São interrogações que surgem. E ninguém jamais poderá dizer por que Sofia se atirou do sexto andar daquele prédio.

  • Este conto conquistou o primeiro lugar no Prêmio Castro Alves de Literatura 2018, promovido pela Academia Teixeirense de Letras (ATL) e foi publicado na antologia “ATL em Verso e Prosa!“.
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