O Inconsciente é a Política: a Posição do Psicanalista

A discussão sobre o posicionamento político do psicanalista é bastante conveniente, devido às circunstâncias políticas enfrentadas pela sociedade brasileira na contemporaneidade, considerando, especialmente, a guerra de narrativas emergente a partir do recrudescimento da dicotomia direita-esquerda, durante longo período adormecida. Torna-se pertinente, principalmente, porque aquele que fala, utiliza-se de uma posição específica para emitir seu discurso; bem como aquele que escuta, produz sua escuta de determinada posição; o poder de enunciação é naturalmente político, uma vez que seu anunciado reverbera no contexto social. Assim, termos como “fascismo”, “autoritarismo” e “democracia” mesclam-se nos discursos, oportunizando uma análise sobre o mal-estar na contemporaneidade (essas questões serão discutidas sem o objetivo de esgotá-las).

Desta forma, pode-se sustentar que a psicanálise ocupa uma posição que não é – de forma alguma – de neutralidade frente às demandas políticas da sociedade. O psicanalista, neste tabuleiro tático, ocupa o estatuto parecido com o estatuto ocupado pelo filósofo grego na antiguidade: a responsabilidade de conhecer as peculiaridades da pólis, mostrando-se sensível às condições de vida no seio da comunidade em que se encontra inserido; motiva os homens no caminho da virtude, auxiliando na formação da consciência ética necessária para o exercício pleno da cidadania. O psicanalista é, portanto, uma espécie de arauto de uma epistemologia da ética, mas não de qualquer ética, como aquela vinculada à moralidade do dever-ser ou dever-fazer, mas à ética do desejo-ser. Não custa lembrar que o sujeito do inconsciente é o sujeito desejante.

Nesta perspectiva, quanto à posição ocupada pelo freudismo, que “procura transformar o sujeito através da exploração de seu inconsciente” em comparação com o marxismo, cujo escopo encontra-se sustentado na ideologia de modificação da sociedade através da luta coletiva, revolução representada pela tomada de consciência e emancipação da classe proletária que, num ato de insurreição contra as elites burguesas, reverte impreterivelmente o quadro de dominação perpetrada pelas classes dominantes, faz-se necessária uma reflexão mais aprofundada. No sentido revolucionário do termo, cujos pressupostos indicam o progresso e a ruptura com um modelo estagnado de ser humano, podemos afirmar categoricamente que a psicanálise é revolucionária (alguns diriam “de esquerda”). Todavia, no sentido de congregação de psicanalistas, as instituições psicanalíticas são regidas unicamente pelo princípio da liberdade associativa, o que torna sua implantação possível somente nos Estados democráticos, o que revela as razões pelas quais a psicanálise foi detratada nos Estados autoritários, incluindo aqueles dominados por ideologias comunistas (consideravam a psicanálise como uma ‘frivolidade burguesa’). Neste ponto em particular, a afirmação de que a natureza da psicanálise é de esquerda não produziria um discurso coerente com o discurso analítico, porquanto não daria à psicanálise (como prática e teoria) a liberdade necessária para se reinventar já que estaria comprimida num molde ideológico restritivo previamente estabelecido.

A Revista Lacuna publicou as atas do Ato dos “psicanalistas pela Democracia”, nas quais são manifestos os motivos do referido Ato. O principal objetivo é retirar os psicanalistas do silêncio dos consultórios e inseri-los na cena política nacional, uma vez que a democracia encontra-se fortemente ameaçada (a cada quatro anos aparece a teoria de que a democracia está sob ameaça; o fato do garoto gritar “lobo!” inúmeras vezes não invalida a possibilidade real de que o lobo apareça). Destarte, vale salientar que o discurso analítico posiciona-se contra qualquer tipo de totalitarismo, porque aposta numa concepção de sujeito que esteja para além da tênue linha que separa as ideologias políticas. Isso é o que torna a psicanálise verdadeiramente revolucionária.

Portanto, parece-nos mais confortável sustentar o discurso analítico não-partidário, porém, ética e ontologicamente político à medida que valoriza a individualidade e a peculiaridade de cada sujeito, sustentando suas posições e proporcionando-lhe utilizar-se livremente de sua posição de sujeito para produzir os significantes que sustentam a história de sua existência. Deste modo, o indivíduo pode posicionar-se enquanto sujeito de seu próprio desejo, convertendo os significantes de seu discurso em verdadeiro ato, que marca indelevelmente uma cisão entre o antes e o depois e que traz o ponto concreto da descontinuidade que proporciona um corte fundamental na compreensão da sua própria história que precisa ser constantemente reinventada.

Com a finalidade de sustentar o discurso peculiarmente analítico é que se iniciou a discussão ora apresentada. Para tanto, mostrou-se necessário, antes de qualquer outro embasamento teórico-epistemológico específico, sustentar, para além do discurso psicanalítico, ipso facto, as circunstâncias político-ideológicas que assolam a realidade brasileira. Se por um lado, os psicanalistas insurgiram-se de sua rotina silenciosa (especialmente os psicanalistas de orientação lacaniana) a fim de dar voz ao discurso ideológico em consonância com as perspectivas democráticas em defesa das quais a psicanálise trabalha, que considera as vicissitudes do indivíduo enquanto sujeito de transformação, por outro, as inserções puramente políticas foge às searas específicas do fazer psicanalítico. Política não é psicanálise, não obstante muitos supostos analistas reproduzam discursos apaixonados nas redes sociais em torno de certas figuras de liderança política, como militantes juvenis, seja com o intuito aberto de detratá-las ou elevá-las.

A adoção de um discurso puramente político acarretaria no perigo de inserção do psicanalista no discurso das massas, tomada de grande intensidade emocional e desprovido do juízo intelectivo esperado de alguém cujo inconsciente fora devidamente analisado. Freud (p. 99)[1] escreveu que “um indivíduo num grupo [massa] está sujeito, através da influência deste, ao que com frequência constitui profunda alteração em sua atividade mental. Sua submissão à emoção torna-se extraordinariamente intensificada, enquanto que sua capacidade intelectual é acentuadamente reduzida, com ambos os processos evidentemente dirigindo-se para uma aproximação com os outros indivíduos do grupo.” Do psicanalista espera-se uma relação mais madura com o contexto social, ou seja, espera-se um juízo analítico e menos apaixonado (no lugar da defesa apaixonada – patológica – de espectros políticos, religiosos ou de outras caracterologias).

Nesta perspectiva, por que o analista deveria abster-se de defesas apaixonadas de determinados modelos políticos se ele é um indivíduo como qualquer outro experienciando a vida no interior de um contexto sociopolítico?

Neste tocante, especificamente, faz-se necessário que se esclareça que antes de psicanalista, o indivíduo é um sujeito, cidadão de direitos e consciência sociopolítica e moral, mostrando-se, indubitavelmente, preparado para construir um discurso em torno de qualquer espectro ideológico, político e partidário (conheça o livro Política e Psicanálise: https://amzn.to/3cFiYFo). Todavia, o que se sustenta neste pequeno texto é a conversão de ato psicanalítico propriamente dito, expresso pelo grande psicanalista francês Jacques Lacan no seminário livro 15, em ato político escamoteado no discurso psicanalítico. É a política do inconsciente.

Mas “o inconsciente é a política”, disse Lacan (seminário 14, A Lógica do Fantasma). Marie Hélène Brousse (p. 11)[2] explica que a “fórmula o inconsciente é a política caminha não só com a definição de Lacan de que o inconsciente é o discurso do Outro (A), na medida em que o Outro é dividido e não existe como “Um” (elaboração própria a seu primeiro ensino), como também com a asserção de que o inconsciente tem a ver com o laço social, justamente porque não há relação sexual”. O inconsciente é a política na medida em que se constitui no laço social, uma vez que os sujeitos são constituídos mediante a vida em sociedade.

Antônio Quinet, no seu livro As 4+1 condições da análise, esclarece que Freud inaugurou a psicanálise através de um ato de abertura do inconsciente à formalização (conheça o livro: https://amzn.to/3eRCKz2). Ato este que se renova em cada psicanálise constituída pelo fazer psicanalítico no setting. Desta forma, percebe-se que o ato produz um corte, uma cisão temporal que separa o tempo anterior do tempo posterior, a saber, antes e depois. Destarte, sempre que o psicanalista aceita um analisando em análise está reinaugurando a psicanálise, reinventando o ato freudiano. Se desta maneira redescobrimos a definição de ato, através do corte sistemático de uma realidade temporal existencial, torna-se indispensável refletir acerca do ato enquanto movimento político que também produz um corte, porém num espaço exterior ao enquadre analítico, portanto, não psicanalítico. Assim, espera-se de um analista que esteja no trabalho do inconsciente, cuja política fundamental consiste no desejo de fazer progredir a psicanálise.

Surge a figura do corte inaugurado pelo ato, mas que não sustenta sobremaneira o discurso analítico por tratar-se de um corte especificamente político e não psicanalítico. Neste sentido, para se produzir um ato psicanalítico par excellence faz-se imprescindível que o discurso analítico exerça poder sobre o inconsciente numa relação transferencial produzida a partir do dispositivo técnico freudiano denominado associação livre. Similarmente, para Lacan, o ato psicanalítico produz um corte irrefragavelmente necessário ainda em outro sentido, embora no tempo da existência dos sujeitos: o ato psicanalítico produz um corte no antes e depois à medida que com o fim da análise, produz um psicanalista. Depois do final da análise o sujeito encontra-se situado num momento de travessia, ou “passe”, que é condição de tornar-se, ele mesmo, psicanalista.

Nesta perspectiva, o dispositivo do passe, situado no lugar do final de análise na concepção lacaniana é, em si, uma aposta política, formativa e constitutiva de um campo de produção de atos psicanalíticos propriamente ditos. Isso porque os atos psicanalíticos abrem uma “passagem” no inconsciente do analisando, deixando as marcas indeléveis do sinthoma.

[1] Psicologia de Grupo e Análise do Ego (Imago, 1996).

[2] O Inconsciente é a Política: seminário internacional (EBP, 2003).

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